4.10.11

A Cidade e as Serras

Dentro, na «nossa sala», ambos nos sentamos nos poiais da janela, contemplando o doce sossego crepuscular que lentamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto tremeluzia uma estrelinha, a Vénus diamantina, lânguida anunciadora da noite e dos seus contentamentos. Jacinto nunca considerara demoradamente aquela estrela, de amorosa refulgência, que perpetua no nosso Céu católico a memória da deusa incomparável - nem assistira jamais, com alma atenta, ao majestoso adormecer da Natureza. E este enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emudecendo, cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas; o segredado cochichar das águas e das relvas escuras - eram para ele como iniciações. Daquela janela, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não anda somente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem enfim descansa.

Queirós, Eça de, A Cidade e as Serras, Planeta de Agostini, Lisboa, págs. 132-133

E é deste despertar para a Natureza que me recordo sempre que acordo com as rolas. É desta ligação que nos esquecemos, sempre que a luz das nossas casas apaga a luz das estrelas e da lua. É nesta comunhão que me reencontro e sou feliz. Que pena não poder beber água da fonte como o Jacinto.

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