Participei na Colectânea de Contos de Natal da Chiado Editora, pela segunda vez. O lançamento foi no Sábado, no Hotel Pestana Palace em Lisboa. É sempre um prazer enorme participar nestas colectâneas, porque encaro os convites como desafios, e porque para mim escrever é tão natural como respirar. O sitio já me diz muito, gosto do ambiente daquele hotel, das pessoas que partilham esta paixão e se cruzam. E muito embora os contos não sejam propriamente a minha narrativa de eleição, pela minha reduzida capacidade de síntese, sinto que estou a progredir.
Hoje partilho convosco o meu conto, espero que gostem. Foi inspirado numa miúda que sigo no Instagram e que também tem um blog
aqui.


«Rita nascera para a enfermagem. Não a querendo exercer em portugal emigrara para Inglaterra onde podia receber horas extra e fazer carreira. Inicialmente estar longe de casa fora uma bênção mas depressa se revelara um enorme desafio. Faltava-lhe a comida, o clima, mas sobretudo os seus. Porém, os dias passavam à velocidade da luz. Terminados os turnos não carecia de nada excepto uma cama, e essa era tão fofa em Londres como em Portugal. As férias de Verão eram sonhadas durante o ano. Já o Natal era diferente pois ficava sempre de banco.Rita não se importava. Conseguia desligar a saudade como separar o horror da humanidade. Se inicialmente escolhera esta profissão pro ser considerar sensível ao sofrimento alheio, sentindo verdadeiro apelo e vocação, rapidamente se apercebeu que para ser boa enfermeira tinha de ganhar distância à dor e gerir bem as emoções para não quebrar. Sangue e dejectos humanos eram simples matéria prima que tratava com desprendimento e desenvoltura. A matemática da profissão era outra, a dos sorrisos e vidas concertadas. Esse era o seu Natal.
Recentemente fora implementada rotatividade obrigatória no Hospital. As alterações feitas a alguns dias do Natal impossibilitaram conseguir um voo para casa. Passaria pela primeira vez a consoada sozinha em Londres. A colega de apartamento estava de turno. Inicialmente evitou pensar mas depois o assunto atormentou-a. Mais do que estar, Rita sentia-se só. Tinha 30 anos, era emigrante, sem marido nem filhos. Faltava-lhe o colo dos pais, irmão e sobrinhos tão intensamente que doía. Precisava de uma enfermeira para cuidar dela. Esta avalanche de sentimentos consumiu-a. Decidiu passear numa loja de caridade, os livros sempre a animavam, mas ao avistar contos de Natal debandou. Reparou então numa belíssima caixa, com enfeites reluzentes e um soldadinho perneta perfeito na sua imperfeição. Rita cedeu e começou a chorar, tanto, que a lojista lhe ofereceu um lenço e um enfeite. Rita não conseguiu recusar e trouxe um pingente igual ao da avó Margarida. Determinada, delineou um plano, decidida a ser a sua própria enfermeira. Pesquisou leilões de voo, procurou alternativas em conta. Nada. No plano B cozinharia bacalhau e ligaria à família por video-chamada, mas não encontrou bacalhau. No dia 24 tentou fazer sonhos mas fracassou e acabou por almoçar arroz com atum. À tarde estava tão deprimida a ver o Sozinho em Casa que chorou compulsivamente.
Quando a colega conseguiu trocar o turno e a obrigou a arranjar-se, Rita ficou reticente. Foram a um restaurante português em Piccadilly Circus, comeram cabrito, ouviram a Orquestra Sinfónica Portuguesa e brindaram com conterrâneos como se fossem família. Depois da videochamada para os pais adormeceu com o coração apaziguado. Contudo, quando pela manhã a campainha tocou e viu toda a família à porta, foi a loucura total. Conseguiram bilhetes e decidiram surpreendê-la. Foi o melhor Natal! Na mala a mãe trouxera bacalhau e fez um verdadeiro banquete. O que a profissão ensinara e Rita esquecera é que o valor das coisas é relativo. O que verdadeiramente importa fala baixinho ao coração.» in Natal em Palavras, Colectânea de contos de Natal Vol. II
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